Programa Socialista Libertário
by Militante - OSL Saturday, Feb 17 2007, 11:18am
address: www.osl.cjb.net
brazil/guyana/suriname/fguiana / anarchist movement / debate
OBESERVAÇÂO: Este texto foi copiado da pagina: www.anarkismo.net
Acredito que ele possa acressentar em nosso debate.
Falta a primeira parte.
E vem junto com comentários feitos na pagina da net.
Para ler todo: http://www.treinoonline.com.br/osl/documentos.asp
"O período de transição, como o tempo que vai da ruptura revolucionária até a concretização de uma sociedade comunista-anarquista é um tema polêmico, que anarquistas e socialistas das mais variadas correntes normalmente negligenciam ou então possuem proposições extremamente genéricas e abstratas.
Entre os anarquistas poucos o discutem ou discutiram historicamente. Atualmente, feitas algumas ressalvas, o que na verdade se configura no meio libertário é uma atitude de rejeição em discutir o tema, motivada por duas razões."
Parte II - Esboço de um Projeto Socialista Libertário
Que este trabalho vá encontrar dificuldades, quem pode duvidar disso? Mas quem pensa que a revolução é um jogo de crianças e que se pode faze-la sem vencer inúmeras dificuldades?
M. Bakunin
Já tratamos aqui do capitalismo, de suas características fundamentais, de todas as mazelas que este sistema impõe para a imensa maioria da humanidade. Analisamos as tentativas de dar uma resposta ao capitalismo, o que conceituamos como sistema estatal e as propostas de reformar o capitalismo vigente até os dias de hoje. Fizemos a crítica a tudo isso. Negamos o capitalismo e rejeitamos as soluções propostas tanto pelo sistema estatal, quanto pelo reformismo ainda vigente. Também analisamos aquela que consideramos como a principal experiência revolucionária libertária nos seus méritos e insuficiências.
Neste ponto a maioria das pessoas nos questiona: E o que querem vocês? Que soluções apresentam? Têm algum projeto? É uma exigência que se justifica. E devemos reconhecer que existe uma carência histórica de proposta positiva por parte dos anarquistas. Esta brecha alimenta as concepções capitalistas, reformistas e autoritárias, afinal, muitos concordam com nossas críticas, mas optam, na prática por outras soluções na falta de uma proposta que lhes pareça coerente e realizável. É comum toparmos com gente que afirma, - Tudo bem sei que este sistema é ruim, mas existe outra possibilidade? Ou então, - O reformismo tem limites, não resolve tudo é certo, mas pelo menos consegue avanços em algumas áreas.
Por isso, sentimos a necessidade de expor, mesmo que em caráter de esboço, o que concebemos como projeto socialista libertário. Dentro desta perspectiva é que buscamos discutir o processo revolucionário entendido como algo de longo prazo, e que para nós passa pela construção que se dá desde hoje, deve atingir uma ruptura revolucionária com a ordem vigente, caminha para uma etapa de transição que chamamos de socialismo libertário e tem como meta o comunismo-anarquista. Este projeto em conjunto é o que chamamos de Projeto Socialista Libertário. Ao longo do texto fundamentaremos os motivos que nos levam a conceituar socialismo libertário e comunismo anarquista como etapas distintas qualitativamente e que, portanto, merecem nomenclaturas também distintas de nossa parte.
Ao longo dos debates internos que realizamos para a construção deste documento nos questionamos sobre a necessidade e possibilidade de se definir, mesmo que em linhas gerais a meta do projeto socialista libertário: a sociedade comunista anarquista. Que sistema seria este? Como funcionaria? Quais suas características fundamentais?
É óbvio que não trata de ser vidente, prever o futuro ou querer determinar em detalhe como será uma sociedade comunista anarquista. Seria talvez uma bela projeção para saciar o desejo de segurança de alguns em antever o ponto de chegada, mas seria também algo sem base real, calcado mais nos desejos do que em análises da realidade. Por outro lado, é preciso afirmar qual é o nosso objetivo, por qual tipo de sociedade lutamos. Renunciar a uma definição do comunismo-anarquista argumentando que é algo muito distante, impossível de antever, que é algo por demais complexo é apenas justificar para si mesmo a imaturidade e a falta de norte de um projeto político.
A maior parte da esquerda anti-capitalista e revolucionária não possui projeto afirmativo de socialismo (dentro de várias modalidades em que este é concebido), ou quando o tem é incipiente. Isso não é um ataque a esta parcela da esquerda, até porque nos incluímos entre aqueles que tem um projeto ainda incipiente. Porém, trabalhar na sua elaboração é uma tarefa que devemos iniciar desde já, mesmo com todas as nossas limitações, pois tal projeto não é algo que surgirá espontaneamente, como fruto da experiência militante empírica. É uma necessidade que no nosso entendimento ajuda muito a dar sentido para as lutas de hoje na medida em que demarcamos um horizonte, mesmo que distante, de longo prazo. Até porque o nosso caminho deve ser orientado por um objetivo, o ponto de chegada que projetamos e não ao contrário, definir o horizonte à medida que se caminha, afinal neste caso o que determina o nosso rumo? Para onde estamos caminhando?
Não concebemos o socialismo, seja ele de que modalidade for, como um destino histórico da humanidade, como uma etapa inevitável do desenvolvimento humano ou como simples resultado da contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de produção no capitalismo. O capitalismo poderá até mesmo sucumbir e dar lugar a outro sistema social que mantenha a exploração e a dominação da imensa maioria, assim como se passou com outros sistemas sociais como o feudalismo e o escravismo. O projeto socialista libertário, o comunismo-anarquista, é para nós um projeto das classes trabalhadoras, que depende de uma série de condições para se efetivar. O que buscamos aqui é traçar alguns aspectos básicos do comunismo-anarquista que concebemos.
Pressupostos de uma sociedade Comunista-Anarquista
Na sociedade, haverá naturalmente menos luxo, mas incontestavelmente mais riqueza; além disso, haverá um luxo ignorado por todos, o luxo da humanidade, a felicidade do pleno desenvolvimento e liberdade de cada um na igualdade de todos.
Malatesta
Chamaríamos de simplesmente de comunista uma sociedade onde cada um trabalhe de acordo com sua capacidade e consuma de acordo com suas necessidades, onde não exista a alienação do trabalho, a alienação política, a alienação cultural, a coisificação do homem, etc. Porém, como o termo comunismo está associado a um determinado projeto político, do qual discordamos, é necessário reforçar um aspecto fundamental para nós: a extinção do Estado e de outras formas de poder sobre o homem, por isso utilizamos como conceito para definir a sociedade que queremos alcançar: o comunismo-anarquista.
Autogestão Sócio-Econômica
Numa sociedade comunista-anarquista, a autogestão sócio-econômica estaria plenamente estabelecida. Uma sociedade onde a realização do trabalho, os produtos do trabalho, as decisões sobre as formas, ritmos e tempos de trabalho, as decisões fundamentais da sociedade sejam socializadas efetivamente pelos seus membros, enfim, seria uma forma social na qual ninguém realizaria um trabalho de maneira alienada.
Isso quer dizer uma sociedade onde todas as pessoas em condições de trabalhar o façam. Onde não existam os que não trabalham, aqueles que trabalham e exploram os demais, aqueles que trabalham e são explorados, aqueles que não encontram trabalho. Trabalho para todos, respeitando a condição de cada um. Que ninguém possa explorar o trabalho de outro de nenhuma forma, que os frutos do trabalho de todos sejam repartidos conforme as necessidades de cada um dos indivíduos.
Para que a autogestão seja possível é preciso também que não exista mais propriedade privada dos meios de produção e da terra, que seja toda ela socializada, posta em comum, para benefício de todos e que ninguém possa utilizar a propriedade privada como forma de coerção para que outros trabalhem para ele ou se obtenha vantagens com isso. Para que a autogestão realmente se realize é preciso se abolir mercadoria, a produção feita com objetivo de troca e não de uso. E para isso, é preciso abolir o mercado e o dinheiro como forma de troca na sociedade.
A atual forma de divisão social do trabalho também deve ser radicalmente alterada. Um dos pressupostos para a existência de uma sociedade comunista-anarquista é que tal divisão do trabalho perca sua força, deixe de existir. No capitalismo o próprio mercado é quem determina a divisão social do trabalho, os homens não tem o controle a respeito de onde e porque trabalhar. Todos têm um papel produtivo na sociedade e esta é uma condição de existência e manutenção da mesma, porém os trabalhos existentes ainda são muito diferentes no que diz respeito ao conteúdo e a forma em que são realizados. Um mineiro, por exemplo, realiza um tipo de trabalho distinto do que um técnico em computação.
Na atual sociedade é o próprio mercado que impõe às pessoas onde e em que trabalhar, ou trabalham em determinados ofícios ou morrem de fome. Se a maioria das pessoas tivesse opções não realizariam trabalhos penosos, extenuantes e perigosos para a sobrevivência. Como as opções de trabalho são muito limitadas, ou simplesmente não existem, e como a grande maioria necessita trabalhar para sobreviver acabam aceitando trabalhos aviltantes.
Em uma sociedade comunista-anarquista este tipo de imposição não pode ocorrer. Na autogestão plena deve-se acabar com a separação entre trabalhadores manuais e intelectuais, as várias graduações de função que reproduzem hierarquias dentro de um mesmo setor produtivo. Não queremos dizer com isso que todos os tipos de trabalho serão iguais, isso seria algo inconcebível, cada pessoa evidentemente terá sua habilitação ou inclinação para determinado tipo de função, mas desde que isso não reproduza uma divisão do trabalho que acabe formando um novo tipo de classe social.
Uma das formas de se acabar com esta divisão é através do avanço tecnológico em todas as áreas, que tenderia a diminuir os esforços para a realização de todas as tarefas e, transformar o trabalho em algo menos árduo para todos, sendo que não haveria muitos problemas em se dedicar em alguns ofícios que hoje são considerados difíceis. Ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia é um dos pressupostos para uma sociedade comunista-anarquista.
A humanidade, há mais de cem anos tem condições de produzir com fartura para todos, com todos tendo emprego, com jornadas reduzidas a mais da metade das atuais oito horas e com acesso farto aos produtos do trabalho. Isso não é um projeto para daqui a 50 ou 100 anos, é uma possibilidade real hoje. O desenvolvimento tecnológico alcançado atualmente permite a produção de excedente suficiente para muito mais do que as necessidades básicas de todos. O acesso ao trabalho generalizado permitiria o aumento desta produção. Não há nenhum impedimento econômico e técnico ao socialismo no sentido de não existir recursos para serem socializados. O que existe é um sistema que se baseia na lógica do lucro para uma minoria, sustentada pela exploração e pelo acúmulo de capital. O que propomos é um sistema que se baseia nas necessidades humanas. Nada temos contra a tecnologia, as máquinas e os avanços da ciência, são estes avanços que permitirão, numa sociedade socialista libertaria cada vez mais a humanização do trabalho.
Do ponto de vista do indivíduo que trabalha, uma sociedade comunista anarquista, com autogestão implementada, seria radicalmente diferente. Jornadas de trabalho reduzidas para mais da metade das atuais (e com perspectivas de reduções maiores conforme avancem as tecnologias), decisão sobre os tipos, ritmos e forma de trabalho que a pessoa realiza, conhecimento sobre a importância social deste trabalho, acesso aos seus frutos, uso do tempo livre para cultura, educação, lazer, descanso, etc. Talvez fuja de nossa percepção o que seja trabalhar mais descansado, desalienado, satisfeito nas várias necessidades e por um período de tempo bem mais reduzido.
Talvez você esteja pensando que é muito difícil chegar até aí e nós concordamos que realmente é um objetivo audacioso, por isso mesmo revolucionário. Mas como chegar até lá é uma outra questão, o que queremos frisar aqui é que a humanidade possui hoje, neste momento, condições de suprir suas necessidades básicas e ir muito além disso, propiciando satisfação ampla para todos. Esta capacidade é algo presente tecnicamente, não é um objetivo distante. Outra questão é como chegar lá, mas que ninguém afirme que o projeto socialista libertário é inviável porque o bolo é pequeno para dividir entre todos!
O Federalismo Político
Um dos principais pilares do projeto socialista libertário é a socialização plena das decisões políticas. Não buscamos apenas a socialização no seu aspecto sócio-econômico. Não se trata apenas de socializar o trabalho e os produtos. Trata-se de buscar mais que isso. As decisões sobre a organização, não apenas da produção, mas da sociedade como um todo - nos aspectos da cultura, da educação, da vida social, do meio ambiente, etc.- devem ser socializadas entre todos. Ninguém deve estar alienado, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista político e cultural.
Estamos falando aqui de uma sociedade onde as jornadas de trabalho foram reduzidas, onde existe tempo para discussão das questões relevantes entre todos. Projetamos um cenário onde as pessoas rotineiramente dediquem um certo tempo para debater e decidir sobre os variados problemas e soluções, sejam eles locais, da cidade, da região, do país. Uma situação onde as pessoas não estão condicionadas pela ideologia, enfim estamos falando de uma sociedade onde existam decisões coletivas em larga escala, o federalismo sendo uma possibilidade real e não apenas um objetivo.
Assim como a autogestão responde pelo aspecto sócio-econômico do comunismo-anarquista o federalismo responde pelo aspecto político. Entendemos que mesmo numa sociedade comunista anarquista seguirá sendo necessário algum mecanismo de tomada de decisões e organização da vida social. Não acreditamos que alcançado o comunismo-anarquista tudo se resolverá espontaneamente. Também não imaginamos uma sociedade, seja ela qual for, sem conflitos e contradições, e isso certamente se expressará em vários planos, inclusive no plano político. Certamente serão contradições e conflitos de outra ordem e seria especulação de nossa parte pretender antever.
No comunismo-anarquista o mecanismo político pressupõe: a participação de todos, decisões coletivas, revogabilidade de funções; igualdade no acesso as informações e poder de decisão, etc. Mas para nós existe uma grande mudança: a incorporação da sociedade em seu conjunto nos processos de discussão e tomada de decisão. A questão não é apenas quantitativa, não se trata apenas de mais gente do que antes participando. Avaliamos que existe também uma mudança qualitativa com este aumento de participação, uma vez que este incremento resulta de mudanças sociais mais profundas.
Muitos podem nos questionar: - Como será possível a todos decidir sobre tudo numa sociedade? Como funcionaria este federalismo? O federalismo tem dois mecanismos básicos para a tomada de decisões, para deliberar: a democracia direta e a delegação. A democracia direta é exercida rotineiramente nos locais de trabalho e moradia pelo conjunto das pessoas. Torna-se inviável em larga escala, afinal é impossível reunir uma cidade, um estado ou país para discutir e decidir sobre uma questão, nesta escala o máximo que se faz é uma votação, não existe a possibilidade de debate, que se preserva em escala limitada. A democracia direta por si só resolve os problemas em pequena escala. Não é necessário que todos decidam sobre tudo. Uma boa parte das questões resolvem-se no âmbito do bairro ou do local de trabalho.
Mas existem muitos problemas que somente se resolvem no âmbito da cidade, do estado ou do país e são questões que afetam a todos. Nestes casos a democracia direta é insuficiente, por isso o federalismo é mais amplo do que a democracia direta, complementa-se com o mecanismo da delegação. Conselhos de delegados com as decisões de base (bairro, por exemplo) reúnem-se para decidir uma questão no âmbito da cidade, por exemplo. Ou um conselho de delegados das cidades para decidir uma questão estadual, e assim por diante. O que deve ser garantido é que as decisões que vão afetar a vida de uma coletividade sejam discutidas por ela. Caso seja uma questão que se limita ao bairro, que as pessoas do bairro discutam e decidam. Se for uma questão que afeta a área de um país, que todos que ali vivem tenham a possibilidade de discutir e decidir.
Quanto à delegação, ela funciona com mandato imperativo, ou seja, o delegado faz o que seu conselho decidiu e não o que sua cabeça individualmente decide. Neste sentido a delegação é o exato oposto dos representantes na democracia burguesa, que recebem um mandato e não precisam prestar contas ou seguir a orientação dos que o escolheram. Além disso, os delegados não precisam ser fixos e são revogáveis a qualquer tempo, em suma eles não constituem como os políticos atuais uma categoria que vive eternamente da função de representar, esta é uma tarefa que todos na sociedade poderiam realizar.
Outro questionamento que sempre se levanta é sobre as decisões: - E quando houver divergência? E quando não se chegar a consenso? Como proceder? O fundamental é que todos tenham a possibilidade de discutir e decidir, mas sabemos que não vai haver sempre consenso. Seria absurdo imaginar uma sociedade inteira funcionando sempre por consenso. Apesar da busca pelo consenso, ele muitas vezes não será alcançado e quando for necessário decidir a melhor forma ao nosso ver é a posição da maioria.
Quando afirmamos que as decisões serão tomadas desta forma, é natural que alguns se mostrem preocupados com a opressão das minorias, que esta possa ser lesada por sua proposta não ter passado quando levada a voto. É certo que com mais tempo para discussões há maiores possibilidades de se chegar ao consenso. Mas em certas ocasiões a necessidade pode exigir que se tomem decisões rápidas devido a algum fator e neste caso não vemos outra alternativa a não ser recorrer ao voto, mesmo fazendo a ressalva do respeito que deve existir pela posição da minoria.
Fazemos questão de abordar estes aspectos, que podem até ser polêmicos para alguns, porque não concebemos o comunismo-anarquista como uma sociedade perfeita, totalmente harmônica, sem conflitos, contradições, desacordos e onde sempre seria possível se chegar a unanimidade. Este tipo de pensamento é fantasioso na nossa forma encarar as coisas, pois na verdade concebe uma espécie de paraíso na terra, trata-se de uma visão idealista, mítica e quase religiosa do projeto socialista. Um tipo de visão que, em se tratando do comunismo como meta final do projeto socialista, esteve presente nos socialistas do século XIX chamados utópicos, nos libertários e mesmo nos marxistas que a despeito dos ares de cientificidade foram extremamente românticos ao tratar do comunismo.
Por outro lado a pretensão de unanimidade, que quase sempre parte do receio de opressão às minorias que seriam uniformizadas pelo voto de maioria, na verdade sonha com a possibilidade de que esta unanimidade seja uma realidade em algum momento, que a uniformidade possa ser alcançada numa sociedade comunista anarquista. É como se a diversidade de opiniões fosse fruto dos elementos do sistema capitalista ainda presentes em todos na sociedade atual, e que uma vez superados, as idéias pudesse ser únicas. Implicitamente, é bom que se ressalte isso, colocam a diversidade, não como um elemento humano, mas algo gerado artificialmente pelo sistema.
Projetando o funcionamento do federalismo político em larga escala propomos que se tenha uma dupla estrutura, uma parte fundamentalmente deliberativa e outra executiva.
A parte deliberativa funciona com base local, através de conselhos de delgados, discute a orientação geral para todos os campos da vida social. Assim podemos ter conselhos de quadra, bairro, cidades, regiões, países. Em cada localidade se escolhem delegados para o conselho, e em cada conselho se escolhe outro delegado para levar as posições ao conselho mais amplo e assim sucessivamente. Por exemplo, o bairro X discute a questão dos transportes, que no caso se resolve no âmbito da cidade, tira uma posição e escolhe um delegado para levá-la ao conselho da cidade, onde a questão será decidida juntamente com delegados de outros bairros.
A parte executiva do federalismo é necessária porque as decisões precisam ser implementadas. Seguindo o exemplo dos transportes, uma vez decidida a orientação geral para a questão ela seria encaminhada para a federação do ramo de transportes, que teria como tarefa implementar a política decidida no conselho da cidade. A federação por ramos de atividade tem como fundamento não a base territorial, mas o ramo de atividade pelo qual é responsável. No nosso exemplo haveriam membros da federação delegados por cada bairro também, cuja incumbência é fazer acontecer o que foi deliberado, ou seja, executar a tarefa.
Quando falamos em uma parte executiva do federalismo queremos dizer que, a função fundamental desta é a de executar a tarefa, mas isso não quer dizer que a federação de ramo não tenha nenhum poder deliberativo. Obviamente que toda tarefa executiva envolve a tomada de decisões que, no entanto, estão subordinadas à orientação geral deliberada pelo conjunto das sociedades através dos conselhos. Seria absurdo querer retirar todo o poder deliberativo das federações de ramo, porque neste caso tudo teria que ser deliberado por todos na sociedade em todos os seus detalhes. Se isso de fato fosse levado á prática teríamos dois problemas graves acontecendo.
O primeiro deles seria a própria inviabilidade dos conselhos, imaginemos a dificuldade em discutir e decidir sobre cada detalhe de cada área social, lembrando que não existem apenas os transportes na pauta, mas a indústria, a saúde, a educação, a cultura e muitos outros setores da vida social. Em segundo lugar, existem determinadas questões que para serem decididas necessitam de conhecimento técnico ou específico. Ainda seguindo o exemplo dado, no caso dos transportes, existem pessoas que por ofício têm condições de pensar e executar as deliberações gerais sobre este setor e outras não. Todos se encontram nesta situação em relação às áreas de atividade com as quais não têm constato cotidiano. Para a tomada de decisões mais gerais todos estão aptos, todos utilizam transporte, conhecem suas necessidades e as necessidades da sociedade como um todo, mas quando se trata dos detalhes de execução a questão se torna objeto das federações de ramo.
O Socialismo Libertário como período de Transição
O período de transição, como o tempo que vai da ruptura revolucionária até a concretização de uma sociedade comunista-anarquista é um tema polêmico, que anarquistas e socialistas das mais variadas correntes normalmente negligenciam ou então possuem proposições extremamente genéricas e abstratas.
Entre os anarquistas poucos o discutem ou discutiram historicamente. Atualmente, feitas algumas ressalvas, o que na verdade se configura no meio libertário é uma atitude de rejeição em discutir o tema, motivada por duas razões. A primeira delas é que muitos discordam, declaradamente ou não, da existência de um período de transição. Neste caso a maioria trata este período como meta estabelecida programaticamente e não como uma etapa historicamente inevitável de um processo revolucionário, lidam com a questão como se fosse a transição fosse uma proposta política e não uma situação para a qual deve-se preparar.
A segunda razão para que se rejeite a discussão do tema é o fato da revolução parecer para a grande maioria algo tão distante, quando não impossível, que desanima qualquer intento sério de discutir um período colocado para depois de uma ruptura revolucionária. É como se avaliassem que algo tão distante não merece atenção neste momento, que depois, no momento em que estivermos mais próximos de uma ruptura o tema poderá ser debatido. O problema desta atitude no nosso modo de ver é que a forma como concebemos nossos objetivos e nosso projeto influencia e orienta nossas ações nos dias de hoje.
Historicamente as discussões entre os anarquistas se restringem normalmente a questões mais gerais sobre o comportamento das pessoas na futura sociedade ou às questões organizacionais imediatas do período pós-ruptura: de como se organizariam as federações de produção e consumo, quais seriam os órgãos de participação popular, etc. Alguns chegaram mais longe e admitiram a existência de um período de transição, porém, o fato de admitirem isso não faz com que analisem os pressupostos básicos de uma sociedade comunista-anarquista, o que faz com que dificilmente ultrapassem a constatação de que as pessoas não vão mudar séculos de uma cultura opressiva introjetada logo após a ruptura revolucionária, ou seja, não trabalharam com os elementos complicadores do processo de construção de uma nova sociedade.
A análise que fazemos é que depois dos acontecimentos da Revolução Espanhola é absurdo que os anarquistas se neguem a fazer discussão da transição. Este erro foi cometido pela CNT e FAI. Embora no plano econômico tenha se planejado a forma da autogestão que seria implementada, no plano militar houve carências e, sobretudo no plano político, na forma de organização do poder, não havia proposta alguma, como já tratamos neste documento. A negativa em se pensar soluções para este período fez com os anarquistas adotassem medidas totalmente contraditórias com a finalidade revolucionária que perseguiam, caindo em armadilhas da burguesia, da pequena-burguesia representada pelo Partido Comunista, e de outros setores reacionários.
Uma concepção espontaneísta sobre os desígnios da revolução animou, e ainda hoje anima, uma boa parte dos anarquistas. O raciocínio para indicar que removidos o Estado e o Capital a sociedade caminharia espontaneamente para o comunismo-anarquista sem necessidade de formulação de nenhum tipo de proposta para isso. Uma certa crença implícita nas potencialidades inatas do ser humano estava por detrás deste tipo de pensamento. Os revolucionários deveriam tratar apenas de derrubar este sistema, a construção era algo que de daria espontaneamente com as energias do ser humano, doravante liberadas das cadeias do sistema capitalista. Isso tudo estava por trás na negação em se pensar a transição. O resultado desta atitude na revolução foi trágico, pagou-se com a derrota e morte de centenas de milhares de pessoas. Seria imperdoável para nós anarquistas tropeçar na mesma pedra duas vezes, negar-se a extrair lições da história.
Há um outro fato que também bloqueia as iniciativas de se pensar a transição. A proposta de um período anterior ao comunismo mais disseminada historicamente dentro do socialismo foi a ditadura do proletariado elaborada de forma algo vaga por Marx e Engels, desenvolvida por Lênin e levada à prática na Revolução Russa. Um dos vários efeitos desastrosos para o socialismo deste processo foi a colagem da idéia de transição à idéia de ditadura do proletariado. Entendemos transição obviamente de outra forma, que nada tem a ver com ditadura do proletariado ou qualquer forma estatal e pensamos que a noção de transição não pode ficar refém das práticas levadas a cabo pelos bolcheviques e por outros comunistas.
Na esquerda socialista em geral o que encontramos à primeira impressão, é de que esta discussão é mais avançada do que nos meios libertários devido à formulação da ditadura do proletariado por Marx e Engels ainda no Manifesto Comunista. Mas mesmo dentro do campo marxista existe muita polêmica até os dias de hoje quanto ao real conteúdo da ditadura do proletariado proposta por Marx e Engels, uma polêmica que é apoiada na gama de interpretações que o caráter vago das referências de ambos ao tema permite.
Hoje em dia a discussão da transição nos meios marxistas está muito relacionada aos regimes que caracterizamos como pertencentes ao sistema estatal. É uma discussão que não contempla a nossa perspectiva socialista libertária, pois, na maioria das vezes, são apenas buscas ideológicas de justificação do fracasso da experiência soviética, e tentativas de minimizar a responsabilidade das idéias marxistas sobre o desenvolvimento e o destino do sistema implantado após a Revolução Russa.
Também devemos ressaltar que a carência desta discussão nos autores clássicos do anarquismo e do marxismo não parece ser imotivada. Percebemos que quando eles tratavam de algo relacionado à transição, o prazo e as dificuldades que imaginavam neste processo eram menores do que aquilo que de fato ocorreu. As diversas revoluções que aconteceram mostraram que os revolucionários não vão simplesmente tomar a sociedade capitalista tal como ela existe e reorganizá-la de outra forma. Os processos revolucionários demandaram uma luta de vida e morte contra a burguesia, em meio a qual o país ou região que era cenário da luta ficava gravemente destruído. As sociedades saídas de processos de ruptura revolucionária necessitaram ser praticamente reconstruídas. Neste quadro a perspectiva dos socialistas e anarquistas do século de XIX de alcançar jornadas de trabalho reduzidas, tempo livre e abundância de produtos suficientes para as necessidades de todos foi bastante adiada.
Os problemas da transição foram efetivamente colocados para os revolucionários a partir do momento em que as revoluções de orientação socialista, incluídas aí todas elas, aconteceram de fato e isso se deu, sobretudo a partir do princípio do século XX. Esta é a base histórica que vai nos permitir pensar o período de transição nos dias de hoje. Por mais brilhantes que fossem os autores clássicos do século XIX a transição é uma questão que não estava colocada para eles da maneira como está hoje para nós. Pensar este período é uma tarefa dos revolucionários de hoje.
Ressalvas feitas, entendemos que temos possibilidades de formular algumas proposições para o período de transição, pois sabemos que a realidade atual de desenvolvimento da sociedade capitalista, com suas forças produtivas, instrumentos de comunicação, formas de organização social e as experiências históricas de revoluções passadas já nos fornecem certas condições de fazer projeções e avaliar alguns caminhos que podemos seguir.
Ao mesmo tempo, sabemos que a teorização sobre o período de transição ou até mesmo a construção de uma teoria geral sobre este espaço de tempo é algo muito amplo que transcende, e muito, os limites dos apontamentos gerais que pretendemos fazer, neste sentido não nos colocamos como formuladores de uma teoria nova, coisa que poucos fazem e quando fazem acabam mais repetindo as orientações gerais e apontando algumas deficiências de teorias sobre o período de transição do que efetivamente contribuindo com questões novas e relevantes.
Neste sentido sabemos de nossos próprios limites, pode ser que acabemos por repetir o erro daqueles que tem a pretensão de formular novas teorias e acabam repetindo as antigas. Porém, como a nossa pretensão é bem mais modesta, é apenas fazer apontamentos para um esboço de um projeto político libertário e revolucionário, entendemos que não podemos deixar de tocar neste tema tão pertinente para o desenvolvimento de uma alternativa de transformação revolucionária da sociedade.
Quando tratamos do socialismo libertário como etapa de transição adentramos o terreno do histórico e do concreto muito mais do que a tratar dos pressupostos gerais para o comunismo anarquista. Isso ocorre não apenas pela maior proximidade em termos de tempo, mas também porque existiram vários exemplos de revoluções que caminharam para a construção do socialismo e iniciaram tentativas de transitar para o comunismo ou comunismo-anarquista, nos fornecendo por isso mesmo vasto material histórico para análise.
A Defesa da Revolução e a necessidade de Internacionalização
As rupturas revolucionárias que pretendiam abrir caminho para o socialismo, em qualquer de suas variantes, nunca aconteceram simultaneamente e em todas as partes do mundo. E nada parece nos indicar que isso possa acontecer atualmente. Ao constatar este fato mais do que óbvio nos colocamos a questão dos limites geográficos de uma revolução e do internacionalismo. Evidentemente que nós gostaríamos de ver a revolução acontecendo ao mesmo tempo em todas as partes, mas a realidade não se preocupa nem um pouco com nossos desejos. O grau de internacionalização alcançado pelo capital nos dá motivos para crer que os efeitos de uma revolução acontecida numa determinada região produzam reflexos diretos e indiretos sobre boa parte do mundo, seja pela interdependência econômica do capitalismo contemporâneo, seja pela velocidade das comunicações e pela força de propagação ideológica do fato. Por outro lado, esta mesma interdependência econômica existente a nível mundial é fruto de uma divisão internacional do trabalho que reduziu muito a margem de autonomia de um vasto conjunto de países. Uma grande parte dos produtos agrícolas e industrializados necessários em cada país são produzidos no exterior, e a questão é mais grave ainda quando se trata de pesquisa científica e tecnologia, o que nos permite concluir que uma revolução localizada territorialmente numa dada região terá problemas econômicos em maior ou menor grau.
Além disso, mesmo que uma região realize a ruptura revolucionária e estabeleça relativamente bem uma sociedade socialista internamente, permanecerá um conflito com o mundo capitalista ao redor. E o capitalismo é um sistema que exige sempre expansão para sua manutenção, uma expansão das massas de lucro, e que exige reprodução ampliada de capital, novos mercados, força de trabalho disponível para ser empregada ou desempregada conforme a conjuntura, exploração dos recursos naturais do território, etc. Podemos agregar a estes fatores a contestação ideológica automática ao capitalismo que representa a existência de qualquer pedaço de terra que possua uma organização social diferente, basta observarmos o incômodo representado por Cuba, mesmo com todas as limitações e deformações daquele regime. Neste sentido a existência de uma região socialista é algo que coloca a mesma em aberto conflito com o conjunto do sistema capitalista, seja em termos ideológicos, políticos, econômicos ou militares.
A defesa militar é uma das principais questões numa etapa de transição. A contra-revolução interna e a agressão externa, ambas apoiadas e, até mesmo organizadas de fora pela burguesia internacional são elementos a levar em conta. É desnecessário neste momento discutir as formas militares que este conflito pode tomar, mas não foram raras as revoluções em que isso se transformou em guerra civil ao longo de anos.
Seja com a existência de uma guerra civil ou conflito dentro dos próprios limites geográficos da região onde o socialismo libertário está se instalando, seja sustentado um conflito nas fronteiras desta região, a defesa militar é uma tarefa que necessariamente mobiliza uma grande energia da sociedade. A necessidade de ter armas é um primeiro problema. Implica em produzi-las, o que por sua vez exige a construção, ampliação ou conversão de fábricas para este fim. Também pode implicar na necessidade de estabelecer comércio internacional, com algum Estado ou com contrabandistas, para obter armamentos. Tudo isso tem sérias conseqüências econômicas que discutiremos mais adiante.
E quem irá portar estas armas? Milícias, guerrilhas, exército, pouco importa a forma militar concreta, isso exige pessoas para lutar. E as guerras têm efeitos sociais em nada desprezíveis sobre uma região. As pessoas tendem a se brutalizar, famílias perdem filhos e a tensão social gera o medo de um revés, que faz com seja difícil o estabelecimento de relações harmônicas entre os seres humanos, além do clima de instabilidade que reina numa sociedade que pode ganhar ou perder uma guerra. Nesta situação uma parte dessa sociedade está mobilizada diretamente pela guerra enquanto todo o restante está indiretamente mobilizado. Por todos estes motivos uma região com conflito interno ou enfrentando um inimigo às portas de casa não tem condições de estabelecer o comunismo-anarquista. Uma sociedade em guerra dificilmente será comunista-anarquista.
A Economia Socialista Libertária: caminhando para a Autogestão
A economia sob o socialismo libertário pode realizar importantes rupturas com o capitalismo, mas ao mesmo tempo e lamentavelmente, herda uma série de problemas deste sistema. Entre as rupturas fundamentais operadas pela revolução estão fim da propriedade privada dos meios de produção e o fim da exploração do homem pelo homem, sendo proibido qualquer tipo de relação de assalariamento ou forma de retribuição em que um ser humano trabalhe para outro. São duas mudanças de fundamental importância e que marcam uma ruptura clara com o sistema capitalista.
No entanto, a revolução nunca toma da burguesia a sociedade tal como estava anteriormente, tratamos disso um pouco atrás. O próprio processo de luta destrói parte desta sociedade. Uma parte do que a burguesia possuía realmente merece ser destruída, trata-se de setores econômicos absolutamente inúteis do ponto de vista socialista libertário. Não se trata de simplesmente tomar as forças produtivas existentes no capitalismo e colocá-las a serviço da sociedade. Em primeiro lugar porque a experiência histórica tem mostrado que nenhum processo revolucionário simplesmente tomou as coisas das mãos da burguesia. A resistência encarniçada que a classe burguesa ofereceu nos momentos revolucionários, em todos os casos históricos, gerou conflitos violentos que no seu curso destruíram uma considerável parcela das forças produtivas. Portanto, no momento da ruptura e após mais do que tomar, parte-se para reconstruir, e este é um dos motivos pelos quais não se passa a uma sociedade comunista anarquista num salto, existe objetivamente uma etapa de transição, o socialismo libertário.
Em segundo lugar, o tipo de aparato produtivo e tecnológico construído no capitalismo não foi projetado para atender as necessidades humanas, foi pensado e construído dentro da lógica capitalista, do lucro, do acúmulo, da produção de supérfluos, da produção de mercadorias descartáveis, sendo que uma boa parcela da economia e da produção está orientada para finalidades que a têm a ver com as necessidades humanas concebidas pelo socialismo. Também podemos considerar a existência de setores na economia fundamentalmente parasitários, de trabalhos absolutamente inúteis do ponto de vista social e que somente se explicam articulados ao capitalismo como um todo, trabalhos que sugam indiretamente os valores criados nas esferas produtivas do sistema, bancos, agências de publicidade, consultorias, comércio, etc. são exemplos de setores a serem eliminados. Dessa forma a questão econômica, além de não se resumir a simplesmente tomar o aparato produtivo, terá que tratar de reconstruir em novas bases, alterar radicalmente as prioridades e formas de produção em que a economia atual se baseia. Em síntese a economia do socialismo libertário é uma economia em processo de conversão para uma economia realmente auto-gestionária.
No entanto, como discutimos um pouco mais atrás no socialismo libertário existe a necessidade de se produzir armas para a revolução. O país tem que deslocar recursos de outros setores da economia fazendo com que exista uma disparidade de investimento na indústria de armas e nas industrias de bens de consumo. Com a necessidade de obter armas para a defesa da revolução até mesmo as relações internacionais acabam ficando subordinadas a esta busca premente de armamentos ou então a busca de tecnologias ou bens necessários para a produção e consumo no país.
A conseqüência econômica mais previsível desta situação é a impossibilidade do desenvolvimento do econômico da região. Se pensarmos que o comunismo-anarquista é uma sociedade com jornadas de trabalho mais reduzidas ainda estamos distantes disso no socialismo libertário, uma vez que não há excedente econômico e a economia exige muitas energias da sociedade. Soma-se a isso a situação de dependência em relação às condições internacionais de troca e compra de mercadorias, afinal se a área da revolução esta em conflito é justamente porque a revolução que não foi internacionalizada ainda, ou seja, estas relações estarão sendo estabelecidas com países e produtores capitalistas.
A questão do excedente econômico, do desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia merece muita atenção. A cada um segundo suas necessidades, de cada um segundo suas possibilidades, esta sentença resumiu para muitos revolucionários a fórmula do que seria o comunismo. Uma frase aparentemente tão simples que tem atrás de si um imenso debate teórico acumulado desde o século XIX.
A afirmação A cada um segundo suas necessidades (...) pressupõe uma sociedade capaz de gerar uma produção suficiente para suprir as necessidades do conjunto da sociedade, ou seja, uma economia de abundância. O capitalismo em certo sentido já possui esta característica, o problema é que esta abundância não está orientada para as necessidades humanas, está voltada para um objetivo: acumulação de mais capital. Mesmo assim este sistema tem condições hoje em dia de gerar mais do que o suficiente para suprir às demandas básicas do ser humano. Mas isso não basta e teremos, como acabamos de ver mais acima, um estrangulamento econômico motivado pelo próprio processo revolucionário. Ademais, as pessoas precisam satisfazer de bem mais do que as necessidades fisiológicas, falamos de uma sociedade capaz de suprir com fartura as várias necessidades humanas até os seus aspectos culturais para citar apenas um exemplo.
A outra parte da sentença, que afirma (...) de cada um segundo suas possibilidades complementa a lógica de uma sociedade comunista-anarquista. Não se trata de exigir de todos a mesma medida de trabalho, num regime social igualitarista que uniformizaria as pessoas. As pessoas possuem diferentes capacidades, explicadas por mil e um motivos e não vão trabalhar ou produzir na exata proporção uns dos outros. Respeitar as possibilidades de cada um é respeitar a própria diversidade do ser humano e suas características. Obviamente não estamos incluindo nesta diversidade atitudes como querer viver sem trabalho algum às custas dos outros, neste caso a pessoa não estaria fazendo segundo suas possibilidades, mas bem abaixo delas.
O excedente econômico é um importante pressuposto da sociedade comunista-anarquista não por um desejo subjetivo de ter fartura para as pessoas, mas por motivos bem mais sérios do que este. Enquanto não existir o excedente econômico a distribuição dos produtos e dos fatores de produção na sociedade de transição pode se dar de duas formas, ambas possuindo contradições que nos impedem de chamar estas formas de comunistas-anarquistas.
A primeira das formas é mantendo o princípio do mercado, ou seja, o trabalhador realiza determinado trabalho durante certo tempo. Abstraímos a qualidade deste trabalho e temos um trabalho em geral, não aquele que produz portas ou casas, mas o que todos fazem e que pode ser medido de forma igual para todos através do tempo. Ao final deste trabalho a pessoa ganharia uma espécie de bônus em HT (hora de trabalho) que ele pode trocar por mercadorias, que possuiriam valor de acordo com o tempo de trabalho humano abstrato socialmente necessário para a sua produção. O dinheiro como equivalente geral cessaria de existir formalmente, mas ainda se manteria em forma de Bônus HT. A vantagem deste tipo de bônus sobre o dinheiro é que não se trata de algo acumulável, afinal de contas todos sabem quanto tempo se trabalha, não há como alguém de repente possuir centenas ou milhares de horas de trabalho.
As coletividades produtoras seguiriam esta mesma lógica para as aquisições de meios de produção. Este sistema seria uma espécie de mercado socialista. Neste caso a lógica do mercado se mantém, a apropriação já não é mais privada, mas o homem continua não tendo controle sobre a produção e a distribuição das coisas, a integração social é realizada pelo mercado, que ainda submete o homem a sua própria lógica, assim, voltamos ao ponto de partida do capital e o homem continua sendo coisa nas "mãos" do mercado, mesmo que possua um grau de controle social significativamente maior do que no capitalismo.
Outra possibilidade é a planificação da economia, racionalizando a distribuição, tornando desnecessários os Bônus HT. Mas neste caso quem faria esta planificação? No século XIX os anarquistas que romperam com o coletivismo, que propunha distribuição de acordo com o trabalho realizado, o fizeram porque avaliavam que para retribuir as pessoas de acordo com o trabalho seria necessário um organismo de controle, elaboração de estatísticas e fiscalização que acabaria por recriar o Estado como organismo centralizador.
Por isso mesmo estes anarquistas se declararam anarquistas comunistas, ou simplesmente anarco-comunistas. Entendiam que o comunismo na economia, isto é a economia de abundância era um requisito para a organização social anarquista, que já não necessitaria do Estado neste momento. Para os marxistas o desenvolvimento prévio das forças produtivas é que habilitaria o definhamento do Estado e a instalação da anarquia, do não-governo. Nos dois casos se estabelece uma relação entre economia e política, entre o grau de desenvolvimento das forças produtivas e a forma de poder na sociedade.
Mas pela análise que fizemos a possibilidade de passagem direta ao comunismo não existe, seja porque em muitas sociedades as forças produtivas não têm o grau de desenvolvimento necessário, seja porque onde este pré-requisito existe, ele será parcialmente anulado no decorrer do processo revolucionário.
Se não queremos uma economia baseada no mercado, mesmo que este seja um mercado socialista, se preferimos não correr o risco de ver a revolução tragada pela lógica própria do mercado que opção temos? O único caminho que enxergamos, alternativa para a qual nos inclinamos, é a administração da economia por um poder formado pela própria revolução, o que chamamos de Poder Popular Socialista. Um poder que para nós, discordando dos anarco-comunistas do século XIX, não é estatal pelo simples fato de coordenar o conjunto da economia de forma planificada. Trataremos das características e da conceituação deste poder logo adiante, por hora discutiremos apenas os aspectos da organização econômica realizada pelo poder popular.
A planificação da economia seria realizada por um conselho econômico, composto por membros representantes de federações autogestionárias por setores da economia e por região. Seriam necessários meios de controle para que as pessoas consumissem de acordo com forma de divisão que atendesse aos interesses da sociedade como um todo. Na prática são mantidas as condições de existência de um poder regulador, que em muitos casos vai se chocar com os interesses de parcelas da sociedade.
Só com o excedente econômico é possível que cada um trabalhe de acordo com suas possibilidades e consuma de acordo com suas necessidades sem que seja necessária a mediação do valor de troca ou de um poder na distribuição dos bens de consumo à sociedade. Mas, até lá, será necessário escolher um destes caminhos e a forma como ele será trilhado. Principalmente se levarmos em conta que hoje em dia o parque produtivo e as tecnologias estão configuradas de forma a produzir não coisas úteis para a sociedade, mas coisas que possuem um alto valor de troca com uma baixa capacidade de utilização. Neste sentido, será necessário produzir novas tecnologias e acabar com parte da antiga para que seja possível criar o excedente econômico de coisas úteis socialmente. Em síntese, para que não persista a lei do valor na troca de mercadorias e nem a interferência de nenhuma espécie de poder regulador e administrador na sociedade é necessário que se gere excedente econômico.
Porém, neste ponto nos deparamos com outro elemento complicador. Como desenvolver a forças produtivas para gerar excedente sem tecnologia? Dependemos neste sentido do conhecimento e das tecnologias de ponta e estas são em grande parte dos casos, posse e propriedade de poucos países, ou melhor, são de posse de alguns tecnocratas residentes nos países que possuem as maiores empresas do capitalismo.
Para resolver este problema temos dois caminhos. O primeiro deles é procurar desenvolver pesquisas científicas localmente e buscar as condições de aplicá-las, sendo que isto geraria como contrapartida, a necessidade do aumento do poder sobre a esfera da produção e especificamente da Divisão Social do Trabalho, o que continuaria com a estratificação social. Esta via tem como inconveniente o fator tempo, afinal leva-se muito tempo da pesquisa à aplicação das tecnologias na produção. É algo que se dá no médio e longo prazo e tem um custo elevado para a sociedade, exigindo maior esforço social e impossibilitando a redução do tempo de trabalho.
O segundo caminho é a expropriação deste conhecimento; seja através das armas, o que estenderia ainda mais a necessidade de manter uma economia voltada para a produção militar, gerando um alto custo social para a população local; seja através da internacionalização da revolução até países detentores de tecnologia de ponta. As possibilidades de implementar uma pesquisa científica local e a internacionalização da revolução não são excludentes, mas em ambos os casos existem conseqüências negativas para a sociedade.
Voltando a questão do excedente econômico, que fique bem claro que o excedente econômico não é para nós um pré-requisito para uma revolução. Raciocínio que pode dar a entender que enquanto a própria sociedade capitalista não gerar excedente econômico, não desenvolver suas forças produtivas, seria impossível uma revolução. O excedente do qual falamos é outro, qualitativamente diferente e somente pode ser gerado numa transição, no socialismo libertário.
Outro fator que faz do excedente econômico uma peça fundamental na caminhada em direção ao comunismo-anarquista se refere às jornadas de trabalho e à divisão social do trabalho, ambos diretamente relacionados. A evolução da economia como um todo, e das tecnologias especificamente podem libertar progressivamente os trabalhadores da necessidade de trabalhar um certo número de horas por dia e tornar mais leves e agradáveis uma série de ofícios penosos que quase nenhum trabalhador optaria por fazer espontaneamente.
Com jornadas reduzidas quantitativamente as pessoas teriam tempo livre para uma série de outras coisas: participação política, educação, cultura, descanso, lazer, etc. Algumas destas coisas, por exemplo, educação e cultura, são fundamentais no sentido de reduzir e acabar com a distinção entre aqueles que realizam trabalhos intelectuais e os que realizam manuais; entre aqueles que possuem condições de hábito e de formação - para participar politicamente e aqueles que são intimidados em ambientes coletivos e não têm o costume de participar. Esta é uma condição necessária para que não se gerem especialistas em política, em oposição à maioria que não é familiariazada com estas questões. O risco neste tipo de situação é de que aqueles que detém o conhecimento se transformarem numa casta administrativa que se perpetua nesta função transformando-se numa nova espécie de governantes. Este é um risco para o qual devemos atentar e trabalhar contra, buscando a eliminação das condições que o enraízam.
Mas como garantir a produção de alguns produtos necessários para a sobrevivência de todos e que são realizados sob péssimas condições de trabalho num período imediatamente posterior ao da ruptura revolucionária? É possível que os trabalhadores agora livres do mando do patrão e com possibilidades de sobrevivência mais ou menos garantidas pela sociedade se recusem a fazer estes ofícios mais penosos, porém imprescindíveis para a manutenção da vida de todos. Diante dessa situação, que postura tomar? Convencer todos ideologicamente da importância destes trabalhos? Colocar os militantes mais firmes para fazer este tipo de atividade? Entendemos que não.
O convencimento tem seus limites, as pessoas sentem que a diferença de tipos de trabalho é injusta, além disso, todos ainda estão mais ou menos influenciados pelos elementos da ideologia da burguesia e não aceitariam simplesmente fazer tarefas mais pesadas enquanto outros podem estar em escritórios ou fazendo coisas que não exijam muitos esforços, é bem possível que sem alguma forma de pressão da sociedade para que se realizem estas tarefas elas não saiam. Enquanto existir esta diferenciação de tipos de trabalho vai haver a necessidade de um controle externo à vontade individual para que determinados trabalhos imprescindíveis sejam feitos.
O socialismo libertário como período de transição rompe com muito do sistema capitalista, estabelece novas relações sociais e configura um outro tipo de sociedade. No entanto, ainda não é a sociedade comunista-anarquista. Para isso restam ainda grandes tarefas como a conversão da economia, a produção de excedente, a redução das jornadas de trabalho, o rompimento com a divisão social do trabalho herdada do capitalismo e o fim da separação entre trabalho manual e intelectual. São estas mudanças, e mais o conjunto de outros fatores, inclusive culturais, que vão habilitar a generalização e o aprofundamento da autogestão sócio-econômica.
Ideologia e Cultura no Socialismo Libertário
A sociedade que emerge de uma ruptura revolucionária passa logicamente por transformações radicais, que são mais visíveis no plano econômico, político e militar. Mas e no campo da consciência socialista das pessoas? Que tipos de modificações podem acontecer?
A sociedade que chega a uma ruptura estava imersa dos pés a cabeça na ideologia burguesa. O avanço das lutas e a ruptura revolucionária não se tornam possíveis, em nosso entender, devido a uma mudança generalizada e massiva no plano da consciência. Trataremos deste tema mais adiante, quando falaremos dos marcos estratégicos atuais de um projeto socialista libertário, todavia podemos adiantar que na nossa concepção as mudanças no plano da consciência são restritas a uma parcela minoritária da sociedade até o momento da ruptura em sua abrangência e limitadas em seu grau de aprofundamento. Isso não corresponde a nossas intenções ou a um projeto político que formulamos, este é um fato que acontece independentemente de nossa vontade enquanto vivermos sob o capitalismo, com todos os mecanismos e formas de reprodução da ideologia burguesa vigentes.
Decorre daí que renegamos a importância da consciência socialista libertária, para o processo revolucionário? Logicamente que não. Todo o trabalho que puder ser feito para disseminar uma nova forma de consciência dentro dos limites do capitalismo é válido e auxilia em muito o desenvolvimento do processo revolucionário. Quanto mais ampla e profunda for esta consciência maiores serão as possibilidades de sucesso na implantação do socialismo libertário e mais tenaz será a resistência popular à reação burguesa e às possíveis investidas autoritárias e burocratizantes de certos setores.
É certo que a ruptura revolucionária permite um salto de consciência sem precedentes para as classes trabalhadoras. Num prazo relativamente curto, ocorrem mudanças radicais, que afetam diretamente a vida das pessoas e desarticulam o aparato ideológico da burguesia. Neste sentido é possível imaginar que a revolução produz um choque ideológico que tem como resultado a elevação e ampliação da consciência socialista.
Apesar disso, pela observação histórica de vários processos revolucionários e pelo que podemos avaliar desde hoje, a força inercial da ideologia burguesa é grande. Neste ponto cabe uma análise. As modificações no campo econômico e no campo da política podem não ser totais, mas são imediatas e visíveis, materializadas de várias formas concretas. Já no campo da ideologia, da consciência e da cultura as modificações caminham de outra forma, numa duração de tempo distinta, mais longa. Não será do dia para a noite que preconceitos arraigados a séculos serão extintos. Basta assinalar que o individualismo, a competição, o patriarcalismo, o racismo, o machismo, as várias formas de discriminações, o atual modelo de família como forma de reprodução das relações sociais capitalistas, etc. não cessarão de existir no período imediatamente posterior à ruptura revolucionária.
A permanência de valores e atitudes gestadas no capitalismo é um problema sério a ser encarado pela revolução. Variadas formas de resistência às mudanças necessárias implementadas pelo socialismo libertário podem acontecer e gerar tensões sociais. No campo do trabalho, por exemplo, a competição, a tendência a trabalhar individualmente e não coletivamente, a submissão, o autoritarismo nas relações, o desejo de acumulação, etc., são problemas previsíveis.
A necessidade de avanços no combate à ideologia burguesa e no desenvolvimento da consciência socialista são necessários para o conjunto da sociedade entender a própria dinâmica do processo revolucionário, compreender como necessidades coletivas à realização de certas tarefas que em si mesmas nada de têm de agradáveis. Organizar-se militarmente para um conflito com a burguesia não é algo agradável e será mais uma tarefa facilitada ou dificultada na medida em que exista uma maior ou menor consciência sobre a importância de organizar este combate. Outro exemplo refere-se à já comentada necessidade de realização de trabalhos penosos e a manutenção de condições e jornadas de trabalho cansativas por algum tempo, uma vez mais será a consciência socialista que permitirá que estas tarefas sejam levadas adiante com o menor grau de tensão social possível.
Mas como será possível a mudança de consciência? Enxergamos este processo por três vias. A primeira delas é a eliminação dos aparatos ideológicos da burguesia, fazendo com que sua ideologia deixe de ser reproduzida como antes. No entanto seria ingênuo imaginar que isso acontecerá do dia para a noite, pois enquanto existir resistência à revolução, a ideologia certamente se manterá como arma do inimigo. Além disso, mesmo que a ideologia deixe de ser reproduzida dentro dos limites da área da revolução ela seguirá sendo parte do mundo capitalista existente ao redor, este combate ideológico não vai cessar, mesmo que mude qualitativamente.
A segunda via para este processo de mudança guarda relação direta com os outros níveis da sociedade socialista libertária. Na medida em que a economia se converte, que o trabalhador tem a possibilidade de discutir a produção, sua finalidade e tem acesso aos produtos do trabalho, isso tem um efeito nada desprezível em termos de consciência socialista, no processo de desalienação econômica que ocorre em paralelo ao de desalienação da consciência. Outro fator que certamente auxilia em muito o desenvolvimento dessa consciência socialista é a possibilidade de participação política irrestrita aberta através do poder popular socialista. O simples fato de tal possibilidade existir é um fator importante no sentido de estimular a participação e a desalienação política das pessoas. Percebemos que estes processos no nível da consciência estão diretamente relacionados com os demais campos de ação da revolução.
Por fim, a terceira via que avaliamos como fundamental para o desenvolvimento desta consciência é o desenvolvimento de novas formas de educação e cultura na sociedade, não apenas para as crianças e os mais novos, mas para o conjunto da sociedade. Nesse sentido é necessária a existência da Instrução Integral, ou seja, que todos tenham acesso tanto ao conhecimento teórico e científico, quanto ao conhecimento prático. Isso garantirá a participação de cada pessoa tanto nas questões de pesquisa científica e teórica, nas questões técnicas e administrativas, nos trabalhos práticos e produtivos e também nas decisões políticas, caminhando para acabar de vez com a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, dando um grande passo para a desalienação do trabalho.
A construção destas possibilidades logicamente não será feita imediatamente após a ruptura devido a uma série de prioridades relativas à própria sobrevivência da revolução, mas não se deve perder isso de vista jamais. O trabalho educativo e cultural será mais bem sucedido na mesma medida em que a revolução alcance certa estabilidade e que as pessoas passem a gozar de mais tempo livre para se dedicar a estas atividades.
Em síntese, da derrocada dos meios de reprodução da ideologia burguesa; da criação de formas socialistas libertárias de gestão, e da construção de uma educação e cultura livres é que cria efetivamente a possibilidade de uma nova consciência social.
O Poder Popular Socialista
No mundo atual as pessoas passam longe das principais decisões políticas, aquelas que afetam a vida de todos nós. No sistema estatal o mesmo aconteceu, as decisões eram tomadas pela minoria dirigente, tanto quanto no capitalismo. Num caso e no outro alguém decidiu pelo coletivo, alienado do processo político. No socialismo libertário se propõe outra coisa, a desalienação das pessoas, a socialização das discussões, decisões e ampla participação.
Todavia, falar em Poder Popular Socialista causa surpresa e incompreensão em muita gente. Esperamos com este texto esclarecer algumas polêmicas e dúvidas suscitadas por este termo, conceituando este termo e explicando como concebemos este poder, para que não fiquem margens a dúvidas e o conceito esteja bem claro.
No campo libertário e entre os socialistas anti-Estado muitas pessoas interpretaram mal este conceito de poder. Desconfiadas pelo que a experiência histórica já trouxe de mentira e opressão sob o rótulo de socialismo, temeram que este nosso poder popular fosse uma reedição anarquista da ditadura do proletariado. Já entre alguns socialistas estatistas, sempre que discutimos e expomos nossa concepção de poder existe a tendência de identificar qualquer poder como Estado, abstraindo o real conteúdo histórico do Estado.
Porquê Poder?
Por um lado por causa de nossa conceituação de poder e por outro lado, da experiência histórica do próprio anarquismo e do campo revolucionário de um modo geral. Entendemos que o poder surge da falta de participação. Este vazio logicamente não existe por muito tempo, assim como não há vácuo, este espaço é sempre ocupado. Um momentâneo vácuo de poder pode surgir por dois motivos. O primeiro é o impedimento da participação, uma força toma o lugar das demais pessoas nas decisões, participa por elas, em nome delas, e assim por diante. É o poder criado pela imposição autoritária, que usurpa o espaço de participação do coletivo e o monopoliza. Logicamente este poder não será exercido para a maioria alijada das decisões, mas apenas e tão somente de acordo com os interesses da minoria dominante.
Mas o poder não está localizado apenas externamente, concretizado em instituições. Ele não vem somente de fora para dentro, não há apenas a imposição do Estado ou de qualquer força externa que bloqueia a participação da sociedade. Óbvio que isso existe, mas não é só aí onde reside o poder. Seria uma visão bastante ingênua esta de pensar que basta acabar com as amarras sociais externas e, pronto: os indivíduos passarão a exercer a sua participação e não existiria mais nenhum poder. Como seria bom se isso fosse verdade! Bastaria a nós destruir os obstáculos e tudo caminharia bem! Na verdade esta é uma visão idealista e tem como conseqüência o espontaneísmo. Afinal, para que pensarmos na organização futura se tudo caminhará por si só?
Devemos reconhecer que este tipo de pensamento fez parte de muitas correntes anarquistas e ainda hoje está presente em algumas delas. Mas devemos, sobretudo, aprender a olhar para a história e com a experiência prática, mesmo que para isso tenhamos que abrir mão de pressupostos teóricos do passado. Isso não significa nenhum desvio ou traição, mas pelo contrário, a continuidade da luta libertária dentro de uma proposta viável historicamente. Por isso dizemos que preferimos experimentar propostas vivas na prática e na ação direta, do que cultuar um principismo estéril.
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cont.
by osl - osl Sunday, Feb 18 2007, 1:02pm
Pois bem, o certo é que há também o poder que surge sem imposição. É o poder que surge cada vez que alguém se recusa, conscientemente ou não, a participar. Cada um de nós já deve ter observado este tipo de postura no próprio dia-a-dia. São inúmeros os casos onde a participação não só é aberta, como também é estimulada. Mesmo assim muita gente não participa, permanece apática, deixa as decisões sobre sua própria vida a cargo de outros, aquilo que alguns chamaram de servidão voluntária.
Mas não é apenas na nossa vida cotidiana que isso ocorre. Muitos poderiam pensar que num momento revolucionário há um salto qualitativo gigantesco no nível de consciência geral das pessoas e que isso garantiria a participação a partir dali. Seria muito bom se assim fosse, mas não é o que a história demonstrou. Esse salto certamente existe, mas não devemos exagerar suas dimensões. Pensar na revolução como a redenção, como uma espécie de apocalipse, onde tudo muda de um minuto para o outro é algo meio religioso, beirando o fanatismo.
O incremento de participação que acontece num momento de ruptura revolucionária (uma insurreição, por exemplo), onde a vida assume um clima festivo, a empolgação e o entusiasmo são grandes, e pessoas estão diante de algo que vai bem, que está dando certo. Passados os primeiros momentos as dificuldades começam a aparecer, a repressão, as baixas, a escassez de gêneros de primeira necessidade, enfim dificuldades pelas quais passam todos os processos revolucionários. Nesse contexto a tendência desta participação e entusiasmo é sempre decair e, são nessas horas que muita gente se dispersa e passamos a relativizar bastante o tal salto de consciência.
É um grande obstáculo a se superar. Infelizmente não é uma mudança que possamos fazer por decreto, não é com um ato ou com uma medida que mudamos isso. Trata-se de uma mudança ideológica, de pensamento. Estas mudanças como se sabe, não se fazem da noite para o dia, as mudanças no plano das mentalidades, mesmo com saltos significativos, funcionam num ritmo de tempo mais lento do que as mudanças econômicas e sociais. Durante este tempo necessário para que estas mudanças se processem de maneira significativa entendemos que haverá poder, não porque alguém se imponha, mas porque e por motivos vários, a participação ainda não será ampla.
Logicamente a participação massiva não é um objetivo fácil de se alcançar, pois depende de uma série de condições que vão muito além da possibilidade formal ou jurídica de todos participarem. Não há decreto ou assembléia revolucionária que decida a participação social massiva. Não será por milagre que todos vão começar a se expressar livremente, depois de séculos de repressão ao pensamento autônomo e de dominação ideológica, nem mesmo participar das decisões, a autogerir a sociedade, por mais que existam as ferramentas políticas para isso. Trata-se de um processo desde a ruptura revolucionária que, como já foi colocado anteriormente, abrange muitos aspectos da vida social, e esse processo não é linear ou suave. A revolução na Ucrânia, a Maknovitchina, assim como a Revolução Espanhola, ilustram bem as grandes dificuldades em se obter a participação popular massiva. Em muitos casos, nas coletividades de Aragón e de Goulai-Polé, boa parte da população não comparecia às assembléias e as decisões tinham que ser tomadas por quem participava na prática. E isso aconteceu nas mais notáveis experiências revolucionárias libertárias da história! Além disso, a Revolução Espanhola demonstrou que não há vazio de poder. Os anarquistas, uma vez que ainda não possuíam uma concepção própria de poder popular socialista, foram obrigados a escolher entre o poder da ditadura do proletariado e o poder burguês, e todos sabemos a tragédia conseqüente da escolha feita.
O vazio de participação se torna um espaço de poder. Nestes casos também há poder, mas é um tipo de poder com origens diferentes, surge da não participação do próprio sujeito. Isso acontece por variados motivos, mas o principal deles é que vivemos numa sociedade onde a lógica do poder acabou se interiorizando em muitas pessoas. Pessoas que foram acostumadas desde crianças a somente obedecer, a somente escutar e nunca falar, a depender dos outros e deixar as decisões de sua vida a cargo de outros. Isso tudo é uma carga que todos nós carregamos em maior ou menor grau porque nascemos e fomos criados nesta sociedade.
Este Poder é necessário porque a sociedade precisa de alguma forma de organização para a tomada das decisões políticas que afetam o conjunto das pessoas. Como organizar a defesa da revolução? Como reconstruir a economia? O que produzir? Como deve ser o ensino? Como serão as trocas? Poderíamos listar uma infinidade itens que exigem uma decisão unificada da sociedade socialista libertária e para isso é preciso um mecanismo de tomada de decisão. Vai ser poder, pois como dissemos, as pessoas sob o capitalismo não estão acostumadas a participar das decisões e chamar para si as responsabilidades e porque vai haver a necessidade do Poder Popular Socialista tomar decisões que podem ser contrárias à vontade de algumas parcelas da população ou então podem acontecer casos como na Revolução Espanhola em que as empresas autogestionárias mais ricas não colaboravam com as mais pobres, etc. O certo é que quanto mais uma consciência socialista libertária estiver disseminada na sociedade melhor e menos problemático vai ser este poder. Nesse sentido entendemos que enquanto não houver participação social ampla, enquanto parcelas da população - mesmo com todas as possibilidades de participação, se mantiverem alienadas da participação política, haverá poder.
Por que este Poder não é Estado nem Ditadura do Proletariado?
Os comunistas estatistas resolveram acabar com a lógica do mercado centralizando a planificação econômica nas mãos do Estado. Ao realizarem a crítica da economia política, a teoria social que explica o capitalismo, os marxistas visavam acabar com a anarquia da produção no sentido estrito do termo, ou seja, o mercado se auto-regulando sem a necessidade de uma força externa, e os problemas decorrentes dela como já demonstramos.
Acreditavam que a planificação estatal iria potencializar as capacidades produtivas permitindo produzir cada vez mais em menos tempo, diminuindo o tempo necessário a produção e aumentando o tempo disponível para as pessoas realizarem outras tarefas, neste sentido o Estado ao modificar as bases econômicas criaria as condições para o aumento progressivo da liberdade e para o seu definhamento. Já analisamos tudo isso quando tratamos do sistema estatal.
De fato o Estado substituiu ao longo do século XX boa parte da anarquia da produção. Porém, o Estado, que nunca foi apenas o reflexo da base econômica da sociedade, tornou-se ele mesmo o agente econômico principal na medida em que regulava a divisão social do trabalho, o que, como e para que as coisas seriam produzidas, como se procederia a distribuição, etc. E a lógica interna do Estado é diferente da lógica do capital. Uma análise materialista que outrora se preocupava com a economia política e a sua crítica deve saber que o Estado ao se transformar em agente econômico passa a ser o núcleo estruturador da sociedade. Agora não é mais a mercadoria e o seu desenvolvimento o núcleo social, mas sim as relações de poder. A busca, como já foi colocado anteriormente, não é mais por mais-valia como condição de reprodução material da sociedade, a busca transforma-se na procura do mais- poder na medida em que o Estado é o núcleo da estrutura econômica da sociedade estatal e que esta para se reproduzir materialmente necessita controlar todas as esferas econômicas e sociais, assim como a lógica da mercadoria o fez no capitalismo. Assim temos a substituição do fetichismo da mercadoria como centro da sociedade pelo fetichismo do Estado. Com isso o que assistimos não foi o definhamento do Estado mais sim o endurecimento das relações de poder como condição de auto-reprodução de um sistema estatal.
E neste ponto temos que acertar algumas contas com os comunistas estatistas. Os mesmos tendem a identificar qualquer forma de poder com o Estado, sendo assim, quando falamos na existência de um poder no período de transição eles se apressam em dizer: "Está vendo, este poder é uma forma de Estado!", assim conseguem eles tirar do Estado o seu caráter histórico e particular de ser uma das formas de poder. O Estado tem uma característica fundamental, que é a de não permitir o acesso de todas as pessoas às esferas de decisão. A decisão sob o Estado fica sempre nas mãos de um número reduzido de pessoas, seja a burocracia administrativa subordinada aos burgueses no capitalismo, seja a burocracia auto-proclamada proletária que é portadora das necessidades de auto-reprodução no socialismo estatal. Nenhum Estado poderá ser verdadeiramente popular, porque nenhum Estado funciona ou funcionou na história, de baixo para cima. Faz parte da essência de qualquer Estado a decisão de cima para baixo, onde a grande massa não tem poder de decisão e este é monopólio de uma classe ou camada privilegiada. Se algum Estado funcionasse de baixo para cima ou representasse realmente os interesses do conjunto da sociedade já não seria um Estado, seria qualquer outra coisa, teria qualquer outro nome, mas não seria um Estado.
Para nós, pode existir um poder no período de transição aberto a participação de todos, mesmo que boa parte das pessoas, e até mesmo a maioria, não participe. O fundamental é que este poder é aberto na prática à participação e isto é importante frisar. Devido à falta de envolvimento de todos é que este organismo acaba se constituindo como poder, que em certas condições acaba por subordinar a vontade individual, como por exemplo, no caso da realização de determinados tipos de trabalho ou da distribuição de alguns bens e conhecimentos que são de posse restrita. Mesmo assim não é um Estado já que o poder não está fechado na mão de poucos e os que participam deste poder não obtém privilégios de classe.
A questão relativa à participação popular nos momentos seguintes à ruptura revolucionária é um ponto crucial para nós. Já dissemos que num primeiro momento muita gente não assume sua participação por inúmeros motivos. A atitude dos que defendem uma ditadura do proletariado é de encaminhar a revolução para a formação de um Estado, de um governo. É como se eles dissessem: - Já que nem todos participam formemos um Estado (governo) com os que estão aí porque as pessoas são assim mesmo e de pouco adiantaria lutar pela participação neste momento.
Nós, ao contrário, mesmo que pudéssemos fazer isso, tomamos um outro caminho: estimular e viabilizar a máxima participação das pessoas. Isso porque entendemos que a formação de um Estado centralizado é sempre o início da contra-revolução; e que, por mais difícil que seja o trabalho para se estimular a participação, este é o único caminho para uma revolução avançar. Basicamente um há duas atitudes em relação ao poder após uma ruptura. A primeira atitude é dos que querem estancá-lo, fixá-lo e convertê-lo num Estado; e a segunda, que é a nossa, daqueles que optam por estimular este poder, estendendo este poder a toda a sociedade, ou seja, buscando a incorporação de todos a este poder, o que seria a negação de poder em si (0 que não significa ausência de organização social e política na sociedade), meta a ser alcançada no comunismo- anarquista.
Neste sentido somos a favor do fim da anarquia da produção para a realização da anarquia social, que nada mais é que a socialização das decisões em todos os níveis com as respectivas condições para a sua realização, através do planejamento da produção social. Não um planejamento centralizado no Estado, mas sim um planejamento socialmente distribuído através da autogestão sócio-econômica e do federalismo político da sociedade.
Por quê o Poder é Popular?
A sociedade é dividida em agrupamentos de classe e frações de classe com interesses diferentes. A própria divisão social do trabalho típica da sociedade capitalista criou diferentes classes sociais com interesses opostos, bem mais complexos do que a diferenciação básica entre burgueses e proletários. Existem diferenças internas no próprio proletariado, interesses específicos dos camponeses, dos proprietários do comércio informal, etc.
Considerando este fato cabe a pergunta: a quem interessa a Revolução? Quais as classes, setores e frações de classe que têm interesse no projeto socialista libertário? Como harmonizar estes interesses, alguns até mesmo antagônicos, no período pós-ruptura revolucionária? Os marxistas tentaram fazer isso através do Estado e da ditadura do proletariado, que teve como uma de suas funções subordinar as outras classes sociais. Nós ao contrário, mesmo sabendo que uma sociedade comunista-anarquista não conviverá com formas de propriedade privada, entendemos que no período de transição devemos buscar uma forma de poder que permita a participação de todos estes setores populares.
O termo Popular é a rigor muito vago e pode dar margem a confusões, afinal é uma designação muito vasta e que a priori pode englobar até mesmo a burguesia. Por isso mesmo vamos explicar que nós concebemos como Popular. Dentro do conceito de Popular estão contidas para nós todas as classes trabalhadoras: proletários, camponeses, pequenos comerciantes, trabalhadores informais e todos aqueles que trabalham para sobreviver, mesmo que possuam algum tipo de pequena propriedade como os camponeses e camelôs para citarmos exemplos. Todavia, o Poder Popular Socialista tal qual concebemos tem conteúdo claramente anti-burguês, já que com esta classe não vemos possibilidade alguma de caminharmos juntos. Ou seja, para nós esta é uma classe que deve ser eliminada.
Entretanto, a questão do espectro de classes sociais que a revolução representa é um tema que merece ser aprofundado, por enquanto nos basta demarcar o que entendemos por Poder Popular.
Por quê o Poder Popular é Socialista?
O Poder Popular é também socialista, já que todos terão a possibilidade de participar de todos os processos de decisão e de planejamento da sociedade através do mecanismo federativo, que permite a participação de todos e possui uma instância globalizante das decisões em que isso seja necessário. Ou seja, o poder será efetivamente socializado. Portanto, o que propomos no período de transição é a existência de um Poder Popular Socialista, de conteúdo anti-burguês. Buscando a abolição completa da propriedade privada dos meios de produção, inclusive a propriedade de formas pré-capitalistas como a camponesa.
No que tange ao funcionamento do Poder Popular Socialista, os mecanismos são exatamente os mesmos que projetamos para o federalismo político na etapa comunista-anarquista: participação de todos, decisões coletivas, revogabilidade de funções; igualdade no acesso a informações e poder de decisão, etc. Quanto à estrutura de organização o mesmo se dá: conselhos com tarefas deliberativas e federações de ramo com tarefas executivas. A diferença fundamental, como já dissemos, não está na forma de organização, mas no grau e qualidade de participação da sociedade, que faz do Poder Popular Socialista um poder e do Federalismo Político apenas uma forma de organização social.
Em síntese, existirá poder até que se criem condições concretas para sua supressão, ou seja, até que todos exerçam o poder e este não seja algo exercido apenas por uma parcela da sociedade, por mais significativa que ela possa ser. Quando chegar esta situação vão existir apenas os organismos da sociedade comunista-anarquista e não mais o poder.
Obrigado... Gracias... Thanks
by Militante Sunday, Feb 18 2007, 2:05pm
Obrigado por ter editado melhor o texto, ficou bom...
Militante, OSL
by Manuel Baptista Sunday, Feb 18 2007, 2:34pm
... Não colocas no campo das hipóteses a transição ser despoletada pela crise ecológica global que, afectando todo o planeta e não poupando os ricos e capitalistas, possa catalizar uma mudança nas próprias elites?
Ou seja, essas elites, mesmo contrariadas, serão forçadas a adoptar um modelo mais equitativo e uma estrutura produtiva incompatível, ao fim e ao cabo, com o capitalismo.
Isto configuraria uma transição para o socialismo libertário bem diferente de um enfrentamento do tipo guerra civil, ou guerra de cerco contra a nascente região socialista libertária.
Eu presumo que o imperialismo dos EUA será o último: na hipótese de um socialismo libertário não se ir afirmando ao nível global, a única alternativa é uma série de estados regionais, fechados sobre si próprios, uma nova idade das trevas... mas esta hipótese parece-me mais improvável ainda do que uma forma -múltipla, por definição - de socialismo libertário.
Não há dúvida que a única maneira de se vencer globalmente os desafios da crise ecológica actual passam por uma drástica mudança nas bases mesmo de organização da sociedade. Os capitalistas mais inteligentes já perceberam isso há muito tempo.
O «grande público» é mantido na ignorância de que outros modos bastante satisfatórios de nos (auto)governarmos existem, sem perda de qualquer conforto ou sem renúncia a nada que seja realmente importante nas nossas vidas... por uma política mesquinha, de curto prazo, dos capitalistas e políticos que pensam «depois de mim, venha o dilúvio...»
sobre a primeira parte (não publicada aqui)
by Manuel Baptista Sunday, Feb 18 2007, 4:21pm
Militante, acho que descartas um pouco depressa demais certas formas presentes nesta sociedade, como «reformistas».
Tenho ideia que o facto de se trabalhar em projectos parciais, como cooperativas, centros auto-gestionados, etc. pode ser um factor importante para difusão de uma nova cultura, não-autoritária... como se podem convencer as pessoas de que vale a pena lutar-se por um socialismo libertário? Apenas se elas tiverem alguma prática daquilo que será institucionalizado em grande escala quando esse socialismo libertário existir.
É muito fácil dizer em abstracto o que será o socialismo libertário e como o tal poder popular deverá exercer-se, mas... com que pessoas?
Com todo o tipo de gente... não com alguns «iluminados», logicamente; as pessoas «comuns» apenas terão oportunidade de experimentar práticas de democracia directa em organizações tais como cooperativas, sindicatos, centros de cultura popular, etc.
Discutindo
by Militante Thursday, Feb 22 2007, 7:31pm
Bom, acredito que o estágio revolucionário e a revolução social em si, será um processo de ruptura violenta. A luta ecológica em si, enquanto questão ecológica, não tem como plano o federalismo ou a socialização do meios de produção, ou seja, ela não leva ao socialismo libertário em si. A conquista disso será através da ruptura violenta da classe trabalhadora com a classe burguesa. As organizações anarquistas latinas do chamado "anarquismo organizado" crêem nisso, e esses são aspectos fundamentais para compreender nosso programa.
Sobre a questão da abstração, creio que nosso trabalho está longe de ser abstrato, aliás, a questão material é um dos eixos centrais de nossa luta: a fome, más condições de trabalho, moradia, desemprego, participação estudantil, mais verbas para a educação pública, a diferença de classes.Isso as pessoas sentem na pele e materialmente, e nós devemos estar nessas lutas, que faz parte do campo social. As pessoas podem aprender muito mais sobre luta e socialismo, por exemplo, numa escola onde o grêmio exerce papel responsável e combativo, onde os estudantes fazem votações em sala e tiram delegados para levar suas posições a um conselho de delegados, onde ocupam a rua e constroem mobilizações em defesa do ensino público, do que num centro cultural(não tiro o seu valor, mais as vezes parece ser esse o seu meio central de luta, o que é um erro), onde meia dúzia de pessoas vivem "libertáriamente" e aí sim se fecham. O programa acima não é um programa para o campo do movimento social e sim o do partido anarquista...
Bom e pra finalizar, a cultura é um meio de propagar a luta, mais ela nunca será quem mudará as verdadeiramente as estruturas , que tem seus pilares mais fortes nas questões econômicas e políticas, somente os movimentos calcados na questão da classe.
(só esclarecendo: não sou militante da osl)
ANARQUISMO É LUTA DA CLASSE TRABALHADORA E ORGANIZAÇÃO!
Questionando conceitos
by Manuel Baptista Saturday, Feb 24 2007, 11:56am
Caro Militante,
Dizes que acreditas que o processo da revolução social será de ruptura violenta. Eu acredito que temos de refinar o modelo do que é ou não é revolução social, do que é ou não ruptura violenta. Tudo é violento na luta de classes. Apenas uma questão de grau: por exemplo, só é legítimo falar em processo «violento», a partir do momento em que há mortes de um e outro lado (???)... absurdo!
Temos que vincar bem aqui que estamos a discutir a teoria que serve de base a um programa.
Frequentemente, eu me tenho insurgido contra a imprecisão, ou falta de aprofundamento de conceitos, nalgumas pessoas, ou organizações, mas...tal não significa que isto se aplique a ti, nota.
Dizes que a luta ecológica não envolve uma questão como a socialização dos meios de produção. Sim, demasiadas vezes as lutas ditas ecológicas «ficam-se pela rama», ou seja, ficam muito aquém do seu potencial revolucionário. Isso tem a ver com uma perspectiva não revolucionária, que é adoptada por quem trava essas lutas.
Mas um forte argumento a favor do socialismo libertário é - sem dúvida- a impossibilidade de solução ecologicamente aceitável, para um sem número de questões, dentro do MODO DE PRODUÇÃO capitalista.
As crenças das organizações (e dos indivíduos que as enformam) são uma coisa e o que a globalidade dos oprimidos sente e pensa é outra.
Seria necessária uma aproximação entre uns e outros, um factor decisivo para ignição da chama revolucionária.
Por isso, acho que a tomada de consciência NOSSA, deve ser ainda maior, para estarmos MELHOR equipados para essa tarefa.
«Sobre a questão da abstração, creio que nosso trabalho está longe de ser abstrato, aliás, a questão material é um dos eixos centrais de nossa luta: a fome, más condições de trabalho, moradia, desemprego, participação estudantil, mais verbas para a educação pública, a diferença de classes.»
Acho que não leste com atenção o que eu escrevi.
«É muito fácil dizer em abstracto o que será o socialismo libertário e como o tal poder popular deverá exercer-se, mas... com que pessoas?
Com todo o tipo de gente... »
Nada do que ecrevi nega isso que replicaste.
É sobre outra coisa: o socialismo libertário é uma coisa compreensível e constroi-se facilmente em termos intelectuais, uma coisa que seja intelectualmente satisfatória para nós... porém, o critério da prática é como fazer com que as massas compreendam e adiram a esse programa.
Como vês, a minha preocupação vai ao encontro da tua.
Daí o meu apelo (noutro post de anarkismo.net) para uma discussão séria sobre o programa.
Se falamos no programa, estamos a falar na organização que o defende e luta por levá-lo a cabo.
Quando dizes...
«As pessoas podem aprender muito mais sobre luta e socialismo, por exemplo, numa escola onde o grêmio exerce[...]»
Compreendo o teu exemplo, porém, de novo acho que há leitura apressada das minhas palavras.
Eu não quis tomar como modelo algumas experiências demasiado fechadas sobre si próprias, mas que adoptam, sem se aperceberem da ironia, a etiqueta de «centros sociais» (ou algo do género).
Uma [auto]educação do povo em luta, na luta e sobre a luta, sim; instituições próprias para propulsar essa luta, e a cultura que é ponto central para catalizar essa luta, sim também. Laboratórios sociais, sim igualmente, desde que abertos, não expressões fechadas de grupinhos...
«O programa acima não é um programa para o campo do movimento social e sim o do partido anarquista...»
Percebi isso perfeitamente, mas é uma proposta para ser levada à prática no campo do movimento social, no qual estão inseridos naturalmente os anarquistas.
Só uma questão anexa. O termo partido não traz senão confusão terminológica, por causa do conceito leninista de partido, que ainda perdura. Seria melhor nos abstermos de usar o termo, porque senão teríamos -constantemente- de explicar que não somos uma variante heterodoxa do bolchevismo, etc., em vez de discutir com as pessoas o conteúdo das propostas desse tal «partido» anarquista. Prefiro falar em «organização» ou «movimento».
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